domingo, 16 de abril de 2017

Banho

Ela já separava o lixo, economizava energia e captava água da chuva para regar o jardim.
Estava conectada a novas possibilidades de se relacionar com o planeta, era uma mulher do seu tempo.
Mas o banho era um problema.
Estava com muita dificuldade de abrir mão daquele banho demorado.
Habituada a resolver grandes questões debaixo do chuveiro, enquanto a água morna escoava pelo ralo. Desde pequena, lembrava-se. Desde sempre.
Os banhos intermináveis da infância , entre espumas e cantorias.
A única palmada que levou, por causa de um banho sem fim.
E cresceu, ficou moça, se apaixonou, sofreu de amor.
Tudo debaixo do chuveiro.
Quando virou mãe, ansiava por esse momento de solidão. O banho.
Trancava-se naquela caixa de vidro e lavava cabelos, olheiras, leite, cicatriz.
 Quando o pai morreu. Quando o amor balançou. Era no banho que chorava.
Agora precisava derramar-se em outro canto, sem desperdícios.
Sem diluir as lágrimas em água nenhuma. Deixá-las evidentes, escorrendo. Fazendo um caminho salgado no rosto, que às vezes até arde no vento.
Lavaria-se à seco
Estava pronta para economizar água e transbordar emoções.


sábado, 15 de outubro de 2016

Vendem-se aplausos

Estou aqui, impregnada de aplausos e fazendo as contas do mês. Ah, se eu pudesse contabilizar cada palma. (ou se eu pudesse me desvencilhar desse vício) Essa noite tive um devaneio enquanto voltava pra casa depois do espetáculo: aplauso era moeda, era valor. Dava pra aplicar na vida prática. Aquele som, aqueles rostos satisfeitos enquanto as mãos batem umas nas outras, aquele bravo que de vez em quando alguém solta. Eu chegaria na escola das crianças e entregaria embrulhado um punhado de aplausos da temporada do início do ano. Já garantia seis meses de mensalidade. Os aplausos do filme, no final da sessão de estréia, serviriam pra fazer a feira. A minha participação foi pequena, mas daria para umas frutas fresquinhas e legumes orgânicos. E poderíamos ainda ir guardando pequenas surpresas que uma temporada pode reservar, para juntar todas no final do ano e viajar com a família, conhecer o mundo. Eu iria à Paris depois de quatro aplausos em cena aberta e ainda ia sobrar um pouco pra tomar uns bons vinhos (aplauso em cena aberta não é moeda fácil). Aquele abraço apertado, de alguém do público que nem te conhece mas te espera na saída só pra dizer que gostou muito, daria pra comprar lençóis novos, pois os antigos eu perdi na mudança. Boas críticas encheriam meu guarda roupa de vestidos coloridos ou quem sabe um sofá novo. E a noite de ontem, com tanta gente querendo entrar, ingressos esgotados, e o público de pé aplaudindo até a mão doer quitaria meu aluguel, adiantado, até meados de 2017. Mas não. Aplausos enchem a alma não a barriga. E é assim, cheia, repleta, que eu vou seguindo. Sempre. Quase desistindo. Sempre. Há vinte e cinco anos, um amor e dois meninos.

segunda-feira, 21 de setembro de 2015

Caminho

Saio de manhã da Barra da Tijuca em direção à Lapa para minha aula de teatro. Sigo pela Floresta, atravessando a cidade pelo Alto, Paineiras, Santa Teresa, Centro. Estaciono o carro beirando o muro do Convento das Carmelitas, e desço o restinho da ladeira à pé. Ai, andar à pé!!! Chego nos Arcos. Na primeira esquina dou um bom dia pra moradora de rua que já virou minha conhecida, esbarro com um grupo de estudantes indo pra escola, trabalhadores, moradores da área e um restinho de boêmios encerrando a noite às nove da manhã. Padaria, pão na chapa, média de café preto. Como é bonita a vida real! Que poesia existe numa padoca com pequenas rusgas na parede, açucareiro grande, copo de vidro pra tomar café. Nenhuma academia, nenhum shopping no meu campo visual, nenhuma yogoberry com luminárias fosforescentes, os letreiros todos escritos em português! Todo o meu corpo respira aliviado, identificado, integrado ao lugar. Subo as escadas do sobrado, a música já vem linda lá de dentro. Lá vou eu!

terça-feira, 13 de janeiro de 2015

Nós e o Mickey

Sucumbimos. Foi o que pensei assim que terminei de programar a viagem em família a terra do Mikey Mouse. Caímos na tentação de carimbar a infância dos nossos meninos com o passeio que nos coloca oficialmente no rol dos bem sucedidos. Passagens pagas, malas prontas e crianças radiantes. Tudo tem um lado bom.
No dia que chegamos, depois de uma viagem cansativa, fomos ao supermercado abastecer a geladeira do apartamentinho que alugamos. Imediatamente acontece alguma coisa com a gente assim que pisamos na terra de Tio Sam. Uma entidade consumista toma conta do nosso corpo e a gente precisa se controlar pra não comprar tudo o que vemos pela frente. Crianças prevenidas e adultos dando o exemplo, conseguimos sair do mercado apenas com os alimentos, mesmo tendo passado por seções de videogames (onde aliás vi um Atari vintage lindo sendo vendido numa edição comemorativa, mas não comprei), cosméticos e roupas infantis.
No dia seguinte começamos nossa rotina de parques. Fomos de cara no maior e mais famoso, aquele que tem o castelo da Cinderela. Tudo cheio, tudo funcionando, carros estacionando ordenadamente e nós obedecendo todas as regrinhas, andando na mão certa e ficando atrás da yellow line. O grande quis logo ir na montanha russa e o pequeno estava em busca do ratinho mais bem sucedido do planeta. Nos organizamos e começamos a enfrentar as filas quilométricas que pelo tamanho demorariam quatro horas, mas duravam apenas quarenta minutos. Lá eles conseguem numa organização de quem toca o gado, fazerem as coisas funcionarem. No meio da tarde, no horário de pico do parque, nos olhamos, eu e o pai, e imediatamente entendemos o desespero um do outro. Vamos manter a calma, ele me disse. Acho que devíamos parar um pouco e comer, eu respondi. Fomos na nossa primeira lanchonete. São todas iguais, não vale a pena perder tempo escolhendo. Senta e come na primeira que vir pela frente. Um hamburguer gorduroso, uma porção de nuguets, e coca-cola, que é praticamente distribuída de graça.Você compra um copão e vai repondo livremente. Imediatamente após o primeiro lanche você entende porque aquela população é obesa. As crianças são lindas, os adultos uns bagulhos. Com exceção de uma ou outra família, todos estão muito acima do peso. E tome marshmellow! Continuamos a andança pelas filas e brinquedos, alternando momentos de puro encantamento e muito cansaço. No fim do dia uma parada com todos os personagens iluminados, queima de fogos e volta pra casa.
 E o carro? Alguém lembra o lugar onde estacionamos? Ninguém. Um milhão de carros num estacionamento todo uniforme. Me desesperei, e depois de procurar o carro alugado por meia hora em vão, me aproximei de uma funcionária fantasiada de escoteira e com a voz embargada e meu inglês que parou no verbo to be, perguntei como acharia meu carro. Ela imediatamente tirou um mapa do bolso e perguntou a hora que eu cheguei. Munida dessa informação ela apontou no mapa e me disse placidamente: Seu carro só pode estar aqui. Estava.
Chegamos na casinha, fizemos um macarrãozinho com carne moída e salada pra recuperar os sentidos gustativos e desmaiamos os quatro, exaustos.
O segundo dia foi bem mais calmo, fomos num parque mais vazio, conseguimos almoçar num fastfood japa e de quebra encontramos coleguinhas da escola dos garotos, o que os deixou felicíssimos! Tirando uma pequena discussão que eu tive com o Pato Donald que não quis tirar foto com o meu filho pequeno, tudo correu bem. E claro, com o local do estacionamento devidamente anotado. Convidamos a família que encontramos para jantar na nossa casa, fizemos uns cogumelos e tomamos umas cervejas. Estávamos satisfeitos e menos cansados.
 Seguimos alternando dias intensos em parques e outros fazendo compras. Nas compras os brasileiros eram rapidamente reconhecidos, vestidos com casacos da GAP e tênis novos. Parecem pequenos outdoors fazendo propaganda de graça para a loja de departamento. A entidade consumista ataca muito agressivamente quando você entra num shopping e percebe que as roupas custam um terço do que se paga aqui. E tem o jogos de video-game, o laptop, o celular novo, o microfone wireless pro pai cantor, a maquiagem profissional pra mãe atriz, e assim seguimos. A família dos amiguinhos da escola era ótima, e fizemos alguns programas juntos, entre eles um restaurante bom e com preço justo que virou nosso point habitual quando ficávamos com preguiça de cozinhar em casa. Adorei os parques dedicados ao cinema, tivemos um dia gostoso num parque aquático escorregando em enormes tobogãs, o pequeno se encantou com a baleia e os golfinhos enquanto o grande comentou que eles seriam bem mais felizes se morassem no mar. Me joguei de montanhas russas radicais, o pai venceu sua claustrofobia em elevadores do terror e simuladores da Nasa, abraçamos o pateta com vontade para tirar foto e deixar o pequenininho muito feliz, com o sorriso colado no rosto, enfim, éramos quatro crianças! Tudo bem que em determinados momentos aquilo tudo me deixava meio tonta, sobretudo a música do idioma, com aqueles funcionários estressados por trás do sorriso congelado gritando behind the yellow line a cada dedinho do pé que cismava em encostar na porra da linha amarela. No último dia fomos a um parque que fechou três horas antes do previsto, o que deixou o mais velho frustradíssimo por não ter ido a montanha russa que ele mais queria ir. Fomos reclamar no guichê de reclamações, e pausadamente explicamos a situação. O funcionário disse que não podia fazer nada, que a gente deveria ter consultado a internet para ver o calendário do parque com os horários previamente divulgados. Ahn? E a gente gaguejando no nosso inglês de mierda (ai que arrependimento de não ter feito o curso de inglês na adolescência), eu arriscando meu portunhol, que muitas vezes funcionava, até que o pai, já puto, chutou o balde e vociferou em bom português: Olha aqui, eu não falo a sua língua, você também não fala a minha, mas o fato é que eu vim lá do Brasil pra trazer meu filho nesse parque, gastei uma fortuna nos ingressos e vocês resolveram fechar três horas antes e impediram do menino ir no brinquedo que ele mais queria. Você vai resolver isso ou não?  O funcionário entendeu imediatamente, respondeu OK, e nos deu três horas de parque no dia seguinte. Aprendi que o melhor mesmo é ficar puto na sua própria língua. Não tivemos tempo de voltar nesse parque, mas valeu a história.
A sensação que dá durante toda a viagem é que tudo é uma mentira muito bem contada, com exceção da alegria das crianças, essa de verdade. Além de altíssimas doses de cafonice. Nada é mais cafona do que as princesas da Disney. Como eu agradeci por ter dois meninos durante essa viagem!
No último dia resolvi passar no supermercado do início, atrás do Atari vintage que eu exemplarmente não comprei no primeiro dia. Tinha acabado. Burra eu. Tenho muito que aprender sobre consumo, aproveitar o momento da compra. No aeroporto, fazendo o check-in da volta, despachamos as malas. Três no total. A atendente da Cia aérea perguntou. Só essas? Sim, eu respondi. E ela chamou outras três funcionárias para verem um caso inédito. Quatro brasileiros para três malas. Eu, metidérrima respondi: viemos nos divertir, não fazer compras. Mas bem que eu queria aquele Atari.




domingo, 15 de dezembro de 2013

Brigadeiro

Acabaram com os brigadeiros enroladinhos. Agora em toda festa infantil tem aquele brigadeiro mole, num copinho ridículo e antiecológico, e uma colherzinha que mais parece um palito. Quem inventou isso? Uma coisa que já estava resolvida. Pega a bolinha e põe na boca e acabou. Sou contra o brigadeiro de copinho.


domingo, 17 de novembro de 2013

Fórmula

Uma burrice querer perseguir essa história de ser artista.
Bom mesmo é ser um produto.
Escolher um rótulo que se adeque bem ao seu tipo físico, à imagem que você vende.
Se você não consegue se enxergar assim faça um workshop.
Um workshop sobre reposicionamento de imagem.
Aprenda com algum coach como se comportar, que trabalhos você deve ter vontade de fazer.
Vista-se bem. Se não sabe combinar a calça com a blusa contrate um profissional.
Apaixone-se pela pessoa certa, alguém que agregue valor à sua marca.
E se você não se sentir feliz, ouvi falar que já existe quem venda felicidade em palestras.



quinta-feira, 18 de abril de 2013

Inconsciência

E quando acordou da cirurgia o médico lhe perguntou se ele lembrava o que tinha dito, ainda sob o efeito da anestesia. Não se lembrava de nada. E o médico lhe disse que toda a equipe havia sido convidada, ainda no centro cirúrgico, para assistir sua peça, que estava em cartaz até o final daquele mês.
É o teatro impregnado na alma, no inconsciente de quem vive para isso, ainda que não saiba muito bem porque. Me lembrei imediatamente de Dulcina de Moraes, atriz magnífica que dedicou toda sua vida a essa arte efêmera e infelizmente morreu sem um décimo do reconhecimento merecido.
Luiz Carlos de Moraes, ator e sobrinho de Dulcina, com quem tive a honra de trabalhar, me contou um dia na coxia essa história: Dulcina já bem velhinha, internada no hospital, fora da realidade convencional, ensaiava um texto com as enfermeiras. Ao receber a visita de um parente, o puxou para um canto do quarto interrompendo o ensaio. O texto é ótimo, o problema é que elas são péssimas atrizes! Ouvi essa história e meus olhos se encheram d'água. Compreendi imediatamente que não tenho como fugir do que está assim tão impresso em minha alma. Porque o teatro, se formos pensar racionalmente, assim na ponta do lápis, é inviável, é impossível. Mas a vida, para quem depende dessas tábuas, desse encontro e desse cheiro de poeira...ah, a vida sem o teatro para mim é impensável!

domingo, 14 de abril de 2013

Aquilo tudo


Era feriado, uma chuvinha. E ela estava ali, tentando cada vez mais estar ali. Naquela sala um pouco arrumada um pouco bagunçada. Ao fundo a trilha de Luzes da Cidade, que o pequeno, que já vai fazer três, assistia estático no sofá vermelho. O sofá vermelho está um pouco gasto. Mas ela não quer um sofá novo. Quer ir à Paris. Tão linda a carinha dele vendo o Vagabundo. Dá até vontade de chorar. Então ela chora. Uma chatice, tudo agora ela chora. E deu pra chorar escondida, porque já não sabe explicar o motivo. Aquela sala. Aqueles meninos. Aquilo tudo. E era tanto pensamento espremido na cabeça. Era melhor ler um livro. Então ela pega o livro de capa amarela que ganhou naquele dia, naquela festa. Foi tão boa aquela festa. E ela chora só mais um pouquinho. Ontem ela encontrou aquela amiga na calçada. A que foi sua mãe na temporada do Planalto. Tão querida ela. E  fala rapidinho, dois beijinhos, um abraço apertado. E a pressa da vida. E já no tchau, antes de entrar no taxi, a amiga fala: eu descobri que a felicidade é uma escolha e resolvi ser feliz.
E ela voltou pra casa pensando nisso.

(out/2012)

De manhã

E ela acorda atordoada. De novo o mesmo pesadelo. Acho que outro, parecido com aquele. E ela não quer mais o mesmo assunto, o mesmo pensamento, mas ele vem mesmo assim. E ela se levanta, lava o rosto e espera que aquela nuvem se desfaça ali mesmo, na pia. Não se desfaz. Então ela disfarça. Que é pra não chover no molhado como ele diz. Mas não adianta. Ela está afogada na poça. Ele não entende. Acha um exagero tanto sentimento. Coisa à toa e ela até hoje com essa aflição. Tanta coisa pra fazer e ela com essa aflição. Tanto trabalho, tanto café, tanta criança, tanta conta pra pagar e ela com essa aflição. Um exagero transbordante de quem não tem problemas de verdade. Ela queria um alívio que não fosse a fumaça. Queria uma magia qualquer. De novo ele não entendeu. Então ela segue. Controlando a chuva que encontra ela sozinha e  teima em cair, molhando o estofado do carro novo.

(out/2012) 

Onde tudo é azul


   E aí vem um susto.
 E acontece bem do jeito que a gente imaginava que seria.
 E ainda assim é um susto. 
 Porque a gente pensa que sabe, mas não sabe.
 Porque acha que é forte e não é.
 E essa mania de querer saber.
 De achar que a verdade é um lugar seguro.
 E agora? E a raiva? E o medo?
 Sei lá o que eu vou fazer.
 Porque tudo que eu imaginava que faria, eu não fiz.
 Não tive vontade. Achei clichê.  
 E agora fico assim, tonta, perdida.
 E triste. Um nó no peito. Um ponto fixo.
 E meus devaneios que me levam a lugares piores ainda. 
 Quero voltar pra lá.
 Onde tudo é azul e bate só uma brisa.
 Onde eu fecho os olhos e durmo. 
 Onde aquele beijo era só meu.

 (set/2012)