segunda-feira, 15 de outubro de 2012

A outra moça

   
Então agora eu vou falar sobre a raiva. Essa manifestação tão próxima do amor, mas que incita dentro da gente nossos piores e mais ocultos desejos. Tenho, de uns dias prá cá, cortado um dobrado com minha raiva. Monstro fêmea que habita meu corpo desde sempre. E sempre eu a mantive serena, impondo-lhe certa compostura apropriada a uma moça. Mas agora a moça não existe mais. Não aquela. Tem outra, diferente. Mais bonita até. Usa maquiagem, anda bem vestida. E gosta de sair sozinha. Mas antes, ela já sabe. O monstro fêmea ainda precisa jogar uns copos na parede, cuspir meia dúzia de palavras, gritar lá do alto da montanha. E então, só depois, ela, a outra moça, vai sair por aí.

terça-feira, 28 de agosto de 2012

Uma velhinha no elevador

Ontem, no elevador do shopping eu vi uma velhinha linda. Daquelas antigas, sem plástica, estampadinha de azul marinho. Unhas bem feitinhas, água da colônia e nas bochechas um pouco de rouge.
Na hora deu saudade  da minha avó. Ela era assim também. Uma velhinha velhinha. Uma velhinha clássica. Uma mulher de oitenta com cara de mulher de oitenta. Isso atualmente é raro.  Quase não se vê uma cabeça branca feminina. As mulheres de hoje em dia, conforme envelhecem, vão ficando louras. E no lugar das rugas surgem bocas enormes, inchadas. Ficam todas meio iguais, idades indefinidas, a mentira estampada na testa paralisada. 
A velhinha do elevador não. Tinha quase explícita atrás de algumas marcas do tempo a sua juventude de outrora. Os traços preservados, cara de quem viveu uma vida bem vivida, de quem conversa com o tempo.
Se eu tiver a sorte de ficar bem velhinha quero ser assim, de verdade.


domingo, 12 de agosto de 2012

E se desse tempo de ter sido avô...

Não me acostumo com essa história de não ter pai. E penso como seria ele aqui, já avô. Certamente ligaria cedo, acordando a casa toda. Dormindo até agora com esse sol, minha filha? Reclamaria, ansioso pela nossa presença. Ia querer reunir os netos. Todos eles. As crianças que ele não teve a sorte de conhecer. Talvez cozinhasse um peixe, cozinheiro que estava. E esperaria os elogios. Ia ser um avô bobo, com açúcar. Desses que tem orgulho de deseducar. Que ensina bobagens e até palavrão. Que passeia na chuva. Inventaria presentes diferentes. Brinquedos que só ele encontraria numa loja escondida no Centro da cidade. A essa altura, com a chegada do quinto neto, a segunda menina, já teria comprado um carro com sete lugares. Para caberem todas as crianças com segurança. É melhor comprar outra cadeirinha! Acharia os garotos engraçados e inteligentíssimos. E agora, avô, deixaria escapar todos os seus poemas, beijos e abraços. Acumulados no coração de pai. As meninas reinariam, como esperado. E ganhariam vestidos e laços de fita combinando. E diriam orgulhosas na escola que foi vovô quem deu. Porque além de divertido ele sabe muito bem escolher roupas de menina! E sentaríamos todos em volta da mesa, tentando controlar a algazarra. E o avô olharia orgulhoso aquela prole. Um com seus olhos, outro com seu humor e aquele que dorme assim, com a mãozinha dobrada, igualzinho ao vovô. E pensaria que tudo valeu a pena. Que a vida roda e se reinventa. E agora sim, depois de viver a doçura de se avô, poderia ir embora mais sossegado.

segunda-feira, 16 de abril de 2012

Confissões de uma magrela

 A moça entra na festinha com seu vestidinho geométrico escolhido a dedo para aumentar um pouco a sua silhueta.  A amiga caminha em sua direção e antes mesmo do oi , fala num tom acima do necessário: você está magérrima! A moça, fina em todos os aspectos, finge não se incomodar com a frase que está ouvindo pela sétima vez naquele fim de semana. E responde num fio de voz: você acha? Talvez ela não tenha conseguido disfarçar a decepção. De nada adiantou empurrar aquelas três taças de sorvete na sobremesa.
A amiga,  bem mais rechonchuda, usava um lindo vestido preto preenchido por curvas bem domadas. Ela deve ter percebido o desapontamento no olhar da moça magra. Mas tá linda! Quem me dera ser assim, comer de tudo e ficar magérrima! Ela disse com uma inveja sincera.
Sim, esse é o maior martírio da moça. A magra, muito magra, carrega atrás de sua sombra esquelética, a culpa por ser leve sem o menor esforço. Se numa roda de amigas ela deixa escapar que está fazendo regime de engorda, recebe em troca olhares carregados de um pequeno ódio contido. As vezes, só em pedir uma coca-cola comum, já sente o peso do seu pecado nos sorrisos amarelos, com gosto de adoçante.
Apesar dos quitutes liberados, a vida nem sempre é doce para as elegantes sílfides. Comprar roupa por exemplo. Quantas vezes a mesma moça já circulou disfarçadamente pela seção infantil de uma loja de departamento. Tentando encontrar escondido entre roupas de manga bufante e porpurina lilás, algo mais sóbrio, tamanho 14, para usar no inverno. Ela não reclama. Gosta até de ainda se pendurar por aí, vendo que a idade chega com menos peso para as magrelas. E segue incompreendida. Entre macarronadas aos quatro queijos, tigelas de açaí e saquinhos de castanha na bolsa. Perseguindo aqueles quilinhos que teimam em faltar. Para quem sabe, sentindo-se gostosa, entrar justa numa calça tamanho 38. Ou, sentindo-se solidária, alcançar o peso necessário para doar sangue para o filho de um amigo do amigo.